Artigo retirado de: http://www.felinus.org/index.php?area=artigo&action=show&id=853 Autor: Becas (Fernanda Ferreira) [ Europe/Lisbon ] 2006/02/19 22:26 |
Fiel |
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Havia o que quer que fosse D’um íntimo desgosto: Era um cão ordinário, um pobre cão vadio Que não tinha coleira e não pagava imposto. Acostumado ao vento e acostumado ao frio, Percorria de noite os bairros da miséria Á busca dum jantar. E ao ver surgir da lua a palidez etérea, O velho cão uivava uma canção funérea, Triste como a tristeza ossiânica do mar. Quando a chuva era grande e o frio inclemente, Ele ia-se abrigar às vezes nos portais; E mandando-o partir, partia humildemente, Com a resignação nos olhos virginais. Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas; Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada: E, como não mordia as tímidas crianças, As crianças então corriam-no a pedrada. Uma vez casualmente, um mísero pintor Um boémio, um sonhador, Encontrara na rua o solitário cão; O artista era uma alma heróica e desgraçada, Vivendo num escura e pobre água furtada, Onde sobrava o génio e onde faltava o pão. Era desses que tem o rubro amor da glória, O grande amor fatal, Que umas vezes conduz às pompas da vitória, E que outras vezes leva ao quarto do hospital. E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu, Disse-lhe: - “O teu destino é quase igual ao meu: Eu sou como tu és, um proletário roto, Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo; E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto, Eu não irei achar o meu primeiro amigo!...” No céu azul brilhava a lua etérea e calma; E do rafeiro vil no misterioso olhar Via-se o desespero e ânsia d’uma alma, Que está encarcerada, e sem poder falar. O artista soube ler naquele olhar em brasa A eloquente mudez dum grande coração; E disse-lhe: - “Fiel, partamos para casa: Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. –“ E viveram depois assim por longos anos, Companheiros leais, heróicos puritanos, Dividindo igualmente as privações e as dores. Quando o artista infeliz, exausto e miserável, Sentia esmorecer o génio inquebrantável Dos fortes lutadores; Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança Partir com uma bala a derradeira esp’rança, Por um ponto final no seu destino atroz; Nesse instante do cão os olhos bons, serenos, Murmura-lhe: - Eu sofro, e a gente sofre menos, Quando se vê sofrer também alguém por nós. –
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente: “Um génio como tu, vivendo como um pária, Agrilhoado da fome à lúgubre corrente! Eu devia fazer-te há muito esta surpresa, Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar; Mas moravas tão alto! E digo-o com franqueza Custava-me subir até ao sexto andar. Acompanha-me; a glória há de ajoelhar-te aos pés!...” E foi; e ao outro dia as bocas das Frinés Abriram para ele um riso encantador; A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida Como bela alvorada esplêndida, nascida A toques de clarim e a rufos de tambor! Era feliz. O cão Dormia na alcatifa à borda do seu leito, E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão, Ganindo com um ar alegre e satisfeito. Mas aí! O dono ingrato, o ingrato companheiro, Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias, Já pouco tolerava as festivas carícias Do seu leal rafeiro. Passou-se mais um tempo; o cão, o desgraçado, Já velho e no abandono, Muitas vezes se viu batido e castigado Pela simples razão de acompanhar seu dono. Como andava nojento e lhe caíra o pelo, Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo, E mandava fechar-lhe a porta do salão. Meteram-no depois num frio quarto escuro, E davam-lhe a jantar um osso branco e duro, Cuja carne servira aos dentes d’outro cão. E ele era como um roto, ignóbil assassino, Condenado à enxovia, aos ferros, às galés: Se se punha a ganir, chorando o seu destino, Os exibia ao sol as podridões obscenas, Poisava-lhe no dorso o causticante enxame criados brutais davam-lhe pontapés. Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame. Quando exibia ao sol as podridões obscenas, Poisava-lhe no dorso o causticante enxame Das moscas das gangrenas. Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer, Disse ”Não morrerei ainda sem o ver; A seus pés quero dar meu último gemido...” Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido. E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo, E bradou com violência: “Ainda por aqui o sórdido animal! É preciso acabar com tanta impertinência, Que esta besta está podre, e vai cheirando mal!” E, pousando-lhe a mão cariciosamente, Disse-lhe com um ar de muito bom amigo: “Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente, Ainda que te custe anda daí comigo.” E partiram os dois. Tudo estava deserto. A noite era sombria; o cais ficava perto; E o velho condenado, o pobre lazarento, Cheio de imensas mágoas Sentiu junto de si um pressentimento O fundo soluçar monótono das águas.
Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira Da corrente. E o pintor, Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira, Friamente cantando uma canção d’amor. E o rafeiro sublime, impassível, sereno, Lançava o grande olhar às negras trevas mudas Com aquela amargura ideal do Nazareno Recebendo na face o ósculo de Judas. Dizia para si: “È o mesmo, pouco importa. Cumprir o seu desejo é esse o meu dever: Foi ele que me abriu um dia a sua porta: Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer.” Depois, subitamente O artista arremessou o cão na água fria. E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente O gorro que trazia Era uma saudosa, adorada lembrança Outrora concedida Pela mais caprichosa e mais gentil criança, Que amara, como se ama uma só vez na vida. E ao recolher à casa ele exclamava irado: “E por causa do cão perdi o meu tesouro! Andava bem melhor se o tenho envenenado! Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro, Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro, Para tornar a ver o precioso objecto, Doce recordação daquele amor tão puro.” E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto. Não podia dormir. Até nascer da manhã o vivido clarão, Sentiu bater à porta! Ergueu-se e foi abrir. Recuou cheio de espanto: era o Fiel, o cão, Que voltava arquejante, exânime, encharcado, A tremer e a uivar no último estertor, Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado, O gorro do pintor! Guerra Junqueiro Nasceu em Freixo de Espada à Cinta (Trás os Montes), em 1850. Faleceu em Lisboa, em 1923 Frequentou a Faculdade de Teologia (1866-1668). Formou-se em Direito (1868-73). Fonte: http://cantinhoanimaisbeja.blogspot.com/2006/01/um-poema.html http://www.secrel.com.br/jpoesia/gjunqueiro00.html |