Artigo retirado de:
http://www.felinus.org/index.php?area=artigo&action=show&id=837
Autor:
TSousa (Teresa Paula Sousa) [ Europe/Lisbon ] 2005/12/21 23:18

Uma estrela para Poldo!



Lisboa, 24 de Dezembro de 2012

Fechou o livro. Cada vez lhe custava mais concentrar-se na leitura. De qualquer forma de que lhe servia aquele sacrifício? Estava velho e cansado! E sentia o peso da idade como uma enorme cruz, não, uma cruz não, como o peso da própria Terra... Arrumou o livro na prateleira e sorriu: “ Enganei bem a vida! A vida e os veterinários!” Saltou para o tapete lanzudo : “ Hummm...ainda me sabe bem... espreguiçou-se e afiou as unhas no...” P O O O L D O!!! Nãaaaao..És sempre o mesmo! O que é que pensas que estás a fazer?” Que os teus desejos se tornem realidade ,Poldo!


Será que ao fim de tanto tempo ela não percebia que o tapete já estava velho demais para ela se preocupar com ele? De que servia tudo aquilo, anos a fio, sempre a mesma conversa... “ Sabes, mamã, no dia em que o tapete veio cá para casa eu vinguei-me á noite! Depois da sapatada que levei, esperei que estivesses a dormir e ...zás...que prazer o de enterrar as minhas unhacas no pêlo fofo do tapete! Perdoas-me, mamã?! Não só pelo tapete mas pelo resto todo, sobretudo, pelo facto de nunca ter conseguido fazer-te sentir o quanto gosto de ti!Poldo caminhou para a cozinha e, junto á porta ficou a observar a Mãe que preparava a refeição de toda a família. De relance, pareceu-lhe ver a Fada Amarela dentro das pantufas já tão gastas pelas roçadelas da mana Zenóbia. “Ah... que saudades da mana Zenóbia, um verdadeiro gato de esgoto com pedigree!” A recordação da boa mana fizeram-no atirar-se para o chão e rebolar-se um pouco.” Poldo, o que fazes, meu desmiolado?! Continuas com o teu ar de criança traquina...anda cá meu desgraçado...” E Poldo ia. Poldo gostava daquelas festas que lhe faziam um arrepio na alma! E esticava à Mãe a cauda tigrada como o não fazia a mais ninguém...”
Doidinho...meu rico menino, lembras-te quando saltavas dos alumínios da porta quando me vias entrar na cozinha? E dos meus ralhetes?! Não ligues, eu gostava quando brincavas comigo assim... Quem me dera que o tempo voltasse atrás para te fazer compreender como gosto de ti!

Poldo lançou um dos seus miados de ratinho e fugiu para a sala. Em cima da mesa estava o livro da Titi Teté. O Livro que lhe fez o tal clique – O Discurso erótico feminino nas cantigas de amor do Egipto Antigo e do Portugal galaico-português – a tese da Titi. Que saudades da Titi. Abriu o livro na página marcada e leu, traduzindo correctamente os hieróglifos: “ O amor que por ti sinto, derrama-se pelo meu corpo como o sal se funde com a água; como a maçã exala um aroma adocicado, como o licor se mistura com o vinho!” . Tornou a fechar o livro, e voltou a saltar da mesa. “Ah as Tias, Co-tias e Madrinh’Irene! Foi com a ajuda de todos que consegui enganar a vida!”

Leopoldo, Poldo na intimidade, é um nome de Gentleman Gato com G grande, dizia a mãe. Embora não tivesse olhos azuis, uns grandes olhos verdes ou amarelos denunciavam um certo ar espevitado da sua pessoa. Tinha um problema: a hortografia. Poldo ria baixinho. Aproximou-se da janela. Lambeu as patas e limpou muito bem as orelhas. Fixou o mundo lá fora. Olhava pelas vidraças sem olhar. Com os olhos parados em ponto nenhum. Arrumou a cauda à esquerda. Aconchegou o dorso e verificou se a ponta da cauda pousava sobre as patas dianteiras.” Perfeito!” Então, comodamente sentado, espraiou o pensamento. Não se lembra muito bem como começou. Lembra-se que fora parar a Felinolândia um dia porque o antigo dono estava muito mal. Um ataque cardíaco...”Sei lá o que lhe aconteceu! Só sei que me colocaram num orfanato e que para lá fiquei. Não estou a dizer mal, não, simplesmente, não era para mim. E fiquei doente; senti-me a morrer. Um dia uma senhora pegou em mim e levou-me á Mãe. Mãe, os teus olhos são como o aroma da maçã! Os teus olhos...a primeira coisa que vi porque pousaram nos meus...Deixa-me ficar junto ao teu pescoço para fazer ronron. Dá-me colo, Mãezinha!” Estremeceu um pouco. Os olhos de gato-que-não-chora encheram-se de lágrimas. Que raio! Parecia mesmo o reflexo da Fada Amarela no vidro da janela. Bocejou e esticou as patas dianteiras: “Posição de descanso...upa!”A Mãe pô-lo na escola a aprender: “ Só dá erros...erros..erros! Bom aluno, sabe de tudo; muita curiosidade; mas agora a escrita...!”Poldo cada vez se descompunha mais. Aquelas memórias deixavam-no desgastado. “ Embora sempre lhe tenha dito, nunca consegui que ela compreendesse o quanto gostava dela! Se ao menos por um instante que fosse que lhe conseguisse dizer...

Naquele instante Dominó passou a correr atrás de Colombina. Colombina bufou e rosnou. Dominó retraiu-se. “ A idade, meu velho...a idade!” Confusão no exterior. Aproximou-se da janela com curiosidade... “Não posso acreditar”...Poldo esfrega furiosamente as lentes dos óculos! Inacreditável...

Rac rac rac moiam as rodas do carrinho de mão que passava na rua... rac rac rac! “ Tinóni, anda despacha-te antes que caia a noite!”- “ Já vou, Escadex! Já vou!”Poldo pensava que tudo na Felinolândia terminara. Guiducha, a menina que fizera nascer o país dos gatos crescera e deixara de acreditar que a magia é possível! E agora, ali, mesmo á sua frente, Bruxa Escadex e Tinóni corriam desenfreadamente pela rua abaixo (ou seria acima?). A equipa da Irmandade da Glória que mais salvamentos de felinos levou a efeito em toda a história da Felinolândia, estava ali, outra vez no activo!! “ Poldo, diz á tua Mãe que precisamos da ajuda dela imediatamente! Rápido, Poldo, mexe-te molengão!”
Num sou mulincão! A Mãi tá destrexada, num vai ir!”, Meteu a pata na boca e apertou-a!Bolas!!!! Cum Caneco...não estava a acreditar! O que estava a acontecer?! Correu como louco pelo corredor fora até á cozinha. A Mãe estava furiosa com a Bruxa Escadex. “Desgraçada, vai-se atrasar outra vez para a tua injecção, Poldo. Lá vai ela para a Irmandande salvar mais gatos. Eu não quero mais nenhum!”. Poldo arregalou os olhos e o pêlo encrespou-se. Como era possível a injecção se a Escadex, perdão, se a Tia Ana Erre tinha dito que já não valia a pena porque ele estava velho e que já nada servia às “urssulas”. Socorro, outra vez não. Não pode ser, por favor! Ele, Leopoldo, doutorado em Assiriologia pela Universidade de Pensilvânia, a maior sumidade em matéria de cultura pré-clássica ( sim, não havia gato à superfície da Terra que não lhe ligasse para saber a sua opinião sobre o assunto) esqueceu tudo?! Que diriam as Titis e Co titis e Madrinh’Irene que juntaram todos os tostoezinhos para lhe pagarem os estudos no estrangeiro?! Sobretudo, a Tia Clódia que guardou escrupulosamente todos os eurozitos na gaveta da mesa de cabeceira com tanto diculfidade ......difaculdade... dif... Lembra-se agora que foi nessa noite que Escadex apanhou a prima Truly que ficou com a Titi Teté. E foi nessa noite que soube quem era aTiti, uma velhota jarreta mas muito engraçada que lhe contou histórias mágicas que as estrelas lhe traziam. A Titi já partiu para o outro lado do Arco Irís.
Num ápice, voltou a correr em direcção á janela e procurou ... procurou. Abriu a janela e estendeu a pata na direcção da magenta. A Fada Amarela poisou na pontinha do seu focinho. “ Até que enfim, Docinho, que abriste as tuas janelas! Não sabes como és especial, gato tonto?! Tu és um Hocus Pocus, como dizia a tua Tia. A magia está sempre em ti! Toma esta estrela e com ela transforma um desejo em realidade.Usa-a bem! Eu agora tenho que te deixar porque preciso de distribuir magia por outros primos! Feliz Natal, Poldo!”
Poldo, achas mesmo que um gato pode usar óculos...e ler...e escrever. Tu és especial, Poldo. Um dia pode ser que queiras usar a tua estrela.

Mãe, queria dizer-te que gosto de ti! Gosto assim deste tamanho todo...mesmo quando ralhas comigo, com os meus irmãos e primos. Quando não tens tempo para todos nós; quando te esqueces de mim na gaveta ou perdes o mano cão nas escadas...quando aspiras e cozinhas, quando te sentas ao computador a escrever. Quando guardas as melhores “muçes” que apaziguam as minhas “urssulas”. O amor que sinto por ti, derrama-se pelo meu corpo...”
Eu sei, Poldo, eu sempre soube! Poldo, tu és a minha estrela!”

Languidamente, Poldo encostou-se ás pantufas já gastas da Mãe e da mana Zenóbia. O cansaço tomou-lhe posse do corpo. A Mãe afagou-lhe a cabeça e enrolou-o ainda mais. A máquina do ronron disparou. Para trás ficou tudo: Felinolândia, as Titis, as Co-Titis, a Madrinh’Irene, os manos e primos...
- Mãe?!
- Sim, Poldo?!
- Gostas de mim?!
- Sim, Poldo, gosto de ti e gostarei sempre até ao fim dos tempos!
- E o que é isso, Mãe?
- A Eternidade... o que não tem fim, Poldo! Como a nossa história!