A minha bisa é irlandesa. Ainda é mesmo depois da sua morte; cada um de nós ainda sente na pele o cheiro e a sombra de “Eira”.
O meu Rudolfo é um gato grande. Não é gordo, não, apenas muito grande. Um doce de gato que , como qualquer outro felino, gosta de festas e de brincar. Que culpa tem de ser grande? Nenhuma... no outro dia perguntaram-me – “ Morde?”
Vivemos a nossa vida a ouvir histórias de fadas e duendes que habitavam as florestas mágicas da Irlanda. A minha bisa sempre que podia, adorava misturar com as histórias fantásticas, outras menos belas de ódios e raivas das gentes que habitavam as aldeias e cidades da Irlanda. Embora nenhuma delas me dissesse respeito, as primeiras enchiam-me a cabeça de sonhos e fantasias; as segundas, eu não percebia. A minha avó encostava-se á ombreira do quarto e dizia – “Senhora, porque conta esses pesadelos às criaturas?” – “ Mi life “, respondia ela...
Rudolfo não faz mal a uma mosca; não rosna, não bufa, não arranha, não morde. Apenas está sempre ali e que tem um sorriso maior que o mundo. Mas todos os gatos têm medo do Rudolfo. Então, Rudolfo faz da noite a sua aliada e convida-me a partilhar a solidão, a dois, das suas brincadeiras. Todos os restantes gatos da casa dormem. Rudolfo ergue-se do seu sono e faz-me ecoar pela casa em gargalhadas, risinhos estridentes. Nossa a noite de poucos minutos: rebola a bola ou eu, já não sei onde começam os meus cabelos ou a côr branca de Rudolfo. Corremos e corremos, corremos e voltamos a correr até que o momento mágico pára, acordados por um miar triste ao meu lado: “ Então e eu?!” Jolie, a tartaruga tricolor muito badocha chega-se de mansinho á pele de Rudolfo que estremece. Rudolfo deita-se; Jolie começa a lamber-lhe as orelhas; Rudolfo estende-lhe o pescoço e Jolie ali fica a lamber-lhe a cabeça, o pescoço... até que Rudolfo, como uma criança pequena deixa que Jolie lhe ofereça o focinho e depois, aninham-se na manta muito juntos a ronronar.
A minha bisa morreu no Saint Patrick Day. Nesse Natal, a minha avó continuou a tradição de cada um partilhar uma história mágica. Este é um costume irlandês: partilhar uma história. Nesse Natal a minha avó contou a história de uma menina irlandesa que se apaixonou por um jovem militar inglês; a família da menina não queria que a menina casasse com ele. Então, o casal de apaixonados casou-se ás escondidas, segundo o ritual católico romano. Foram perseguidos porque nenhuma das famílias os queria acolher. Fugiram...saíram do país e foram felizes para sempre! “Não tem cavaleiro, princesa e cavalo branco!” – disse eu. “Nem todas as histórias têm, Teresa! E não deixam de ser mágicas por isso! Salva e serás salva- é este o espírito da magia!” – respondia ela.
Rudolfo estava a morrer! Quando o conheci era como se o mundo se estivesse já a extinguir. Nada importava: nem a água, nem a ração, nem os afagos e as vozes que fervilhavam na quarentena. Uma voz ao fundo da sala: “ Se quiseres tentar...lipidose hepática... deixado aqui à porta... suicídio! Olha tenta, mas...”. Nada de novo, neste lado do mundo. Eu sabia. Abro a porta. Sinto o cheiro da raiva e do desespero. Ergo o focinho de um enorme vulto branco. Os olhos azuis do mar de “Eira” prolongam-se no meu olhar. “ A magia acontece; não sabemos quando.... Quando parei ... Rudolfo estava já no meu coração.
Passo a mão sobre o pêlo fofo de Rudolfo que agora dorme enrolado na Jolie. Continuo a dobrar as meias que deixei penduradas no sofá. “Bisa, tenho uma história para contar este Natal! Vou partilhar uma história mágica sobre um gato! Enquanto conto, afagas-me a cabeça?!
Feliz Natal, para todos vós!
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