Artigo retirado de:
http://www.felinus.org/index.php?area=artigo&action=show&id=715
Autor:
mhortaramos (Maria Manuela Picado Horta Alves Ramos) [ Europe/Lisbon ] 2005/06/05 14:48

Uma História Suja : Crónica Direitos e Deveres



Autor: Luís Sepúlveda

Editor: Edições ASA

Ano de Publicação: 2004

Formato: 21 x 14 x 1

Suporte: Livro

Número de páginas: 224

ISBN: 9724140059




Transcrição de uma crónica do livro "Uma História Suja", de Luís Sepúlveda, que aborda os direitos e deveres e fala sobre os animais. Esta artigo diz respeito aos "nuestros hermanos", mas é perfeitamente aplicável ao nosso Portugal:

" De tempos a tempos aviva-se uma polémica que fala da concessão de direitos aos animais, como se a existência desses direitos desse à raça humana a desculpa para ignorar os seus deveres em relação aos outros seres que nos acompanham na efémera aventura da existência.

É um facto que o mundo está cheio de sádicos: os que atiram um carneiro da torre de uma igreja, os que incendeiam os chifres de uma vaca espantada, os que cortam pescoços de perus e patos em nome da alegria e da festa em qualquer dessas povoações chamadas "Colhões do Bispo" ou coisa parecida. Pois bem, estes, além de sádicos, são miseráveis cretinos, e estão a anos-luz de entender o significado da palavra "direito" ainda que os beneficie, porque vá lá você fazer com que o alcaide e os membros do concelho municipal de algumas dessas terrinhas compreendam que não está certo dar punhaladas a um vitelo até morrer exangue em plena rua, e que têm o direito de se rebelar contra a estupidez que lhes mancha as mãos e o prestígio.

Todas as barbaridades descritas são pura e simplesmente delitos cometidos contra a civilidade, contra o senso comum, contra uma maioria que conquistou o direito de viver em harmonia com o resto dos seres que acompanham uma existência humana, e esse direito exerce-se cumprindo uma série de deveres éticos e morais.

Mas também é evidente que, para defender os direitos dessa maioria, devem ser criadas medidas que castiguem exemplarmente os maus-tratos aos animais; no entanto, esta aparente calinada não está ao alcance de todos os intelectos.

Há poucos dias, o Partido Popular rejeitou a iniciativa apresentada pelo PSOE, CiU, ERC e IU para que a brutalidade com os animais fosse considerada um delito e, como acontece com frequência, as boas intenções foram entregues a uma comissão tão anónima como ineficiente.
E o que é que essa comissão deve fazer? Talvez descobrir a inequívoca relação entre deveres e direitos? Talvez estudar adaptações para as leis de protecção - nunca de direitos - animal que existem noutros países europeus não incomodem o conservadorismo fomentador das barbáries anteriormente descritas?

Nós, os seres humanos, temos o direito de viver, direito consubstancial com o dever de preservar a vida, a minha e a do próximo, a que nos rodeia e a que está para além do horizonte. A vileza de uns poucos, envilece-nos a todos quando a passividade dos encarregados de garantir o nosso direito de nos relacionarmos razoavelmente com o meio natural, com a formidável biodiversidade de que dependemos, se manifesta como cumplicidade com os selvagens e com os promotores da selvajaria.
É urgente criar, além de leis que castiguem os maus-tratos aos animais, políticas que ensinem e realcem a importância própria dos deveres da raça humana, ainda que contradigam os grosseiros argumentos dos donos das coutadas, dos débeis mentais que falam do folclore rural, das tretas mercantis dos chefes da indústria cosmética, ou das patologias sexuais dos caçadores espanhóis que ostentam a desonra de serem os maiores exterminadores de espécies protegidas do mundo.

Não confundamos o carácter iniludível dos nossos deveres éticos e morais com o outorgar direitos aos frangos ou aos burros, embora esteja seguro que um burro com o cargo de tribuno nunca zurraria exigindo que as burras recebessem pensões menores do que os machos quadrúpedes apenas porque elas vivem mais.

Cumpramos os nossos deveres humanos, façamos com que a sua observância seja norma, porque essa é a maneira de exercer o maior dos nossos direitos: o direito de viver em harmonia."



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