Artigo retirado de:
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Autor:
catw (Carla Mar) [ Europe/Lisbon ] 2004/06/28 14:16

Os pensamentos a flutuar...

Fora-lhe difícil habituar-se às regras, ao uniforme e principalmente à ausência do cão, companheiro fiel desde os 5 anos. Às vezes, ao sair da sala de aula, o hábito ainda obrigava os olhos a procurá-lo no chão da entrada. Era deitado à porta que esperava por ela para irem para casa.

Sem a menina para escoltar, o cão passara a seguir a mãe desta para todo o lado. Deitava-se pacientemente ao fundo da sala onde a mãe de Isabel, professora, dava aulas, esperando que chegasse a hora de a seguir para casa. Helena dizia que se o Ringo fizesse os testes da 4ª classe passaria com distinção, de tantas vezes que ouvira as lições.

“Está luar hoje.” – disse a Ana – “Queres ir à piscina logo à noite?”. A aventura tem mais gosto por ser clandestina. À noite nenhuma aluna está autorizada a sair do edifício principal, e os cães de guarda andam soltos. O sorriso travesso diz sim.

Isabel sabe que não há nada melhor para estabelecer uma relação de amizade com qualquer animal, que um pequeno pitéu. Fatias de carne assada, surripiadas da travessa do jantar com a cumplicidade das colegas, (que se encarregaram de desviar o olhar atento da aluna mais velha, responsável pelos bons costumes enquanto estão à mesa) fariam o efeito pretendido. Sem vontade de descascar a laranja de faca e garfo, tinha aproveitado também para guardar uma no bolso para comer mais tarde.

A incursão nocturna no quarto da vigilante que ressona, dá direito à chave do gabinete da regente; é lá que estão as chaves da porta de saída para a quinta. “Um quase furto não é pecado” - pensa Isabel – “Afinal vamos devolver a chave, não vamos? “ Já a desobediência pesa-lhe um pouco, mas tudo isso é esquecido rapidamente na idade em que a liberdade não tem preço.

Os pastores alemães ladram, mas cedem com facilidade ao suborno das fatias de carne do jantar. Já conhecem a miúda e estão habituados a aceitar-lhe as prendas.
Ninguém acorda, ninguém as vê. Caminham pelas sombras acompanhadas pelos cães, momentaneamente esquecidos do seu dever. Levam vestidos os roupões, os pijamas e os sapatos do dia a dia para caminhar na gravilha que conduz ao recanto da quinta onde fica a piscina.

Chegadas, algumas estendem toalhas e sentam-se a conversar. Isabel deita-se e olha o céu. Submerge no azul escuro mais distante, onde os raios de lua não chegam. Os pensamentos a flutuar, recordando a aula de Educação e Moral na última hora da manhã, os risinhos das colegas, o olhar preocupado da professora.
" E para que quero eu ir para o Céu, se não estão lá o meu cão e os meus gatos?" A pergunta, que para a miúda é apenas uma constatação do óbvio, faz franzir o semblante da professora.

A envolver tudo, a luz da lua e o som do gotejar da boca da gárgula para dentro da piscina. As miúdas estão deitadas em cima da pedra do rebordo. Isabel deixa cair uma mão que acaricia a água, e com o outro braço envolve o pescoço do pastor alemão que se deitou de guarda ao lado dela. Suspira. Este é o momento do dia, em que mais perto esteve da sua versão de Paraíso.

Carla Martins (06/09/2004)
Dedicado ao Ringo, o meu primeiro cão e o melhor amigo de infância.