Artigo retirado de:
http://www.felinus.org/index.php?area=artigo&action=show&id=103
Autor:
Inner_Silence (Leonor Calaça) [ Europe/Lisbon ] 2004/01/31 00:26

A história da Mia

Eu estava na central de camionetas de Vale Paraíso, perto de Albufeira, à espera de apanhar um autocarro para Faro. A viagem estava quase no fim, e eu estava cansada, tinha vindo de Braga e eram muitas horas de viagem, ainda para mais com um comprimido para o enjôo em cima, o que às vezes me faz sentir que estou na “Twilight Zone...”

Ao pé do autocarro que me estava destinado ouvi um tímido “miiiii”. Fiquei toda contente, como marada por gatos que sou (e parvamente ingénua às vezes), pensei logo que tinha sido bonito os senhores da central terem adoptado um gato e tratarem dele... Anda cá, bichano, deixa-me fazer-te um miminho...


Tentei perceber de onde vinham os miaus abafados, e lá vi que era de... debaixo do autocarro! Fiquei bastante apreensiva, porque tive medo que os padrinhos do gato fossem ter um desgosto caso a sua mascote se enfiasse debaixo de uma roda!

Lá me pus eu a chamar “bichinho, bichinho...” cheia de medo, a pensar que o motorista ia ser um selvagem e pôr o seu veículo a caminho sem se importar com nada (sim, eu fico logo toda melodramática quando fico aflita por um animal em perigo, saem-me logo grandes novelas “disneyescas” da cabeça).

Finalmente, lá vejo um pirralho a sair de ao pé da gigante roda do autocarro, direitinho a mim, a fazer muitos miiiiiis. E era mesmo um pirralho! Criança pequena, não mais de dois mesitos, e se calhar já era dizer muito. Que inconscientes os donos, então deixam o puto andar assim à vontade? Toda a gente sabe que as crianças são aventureiras, é preciso ter muito cuidado! Fiquei zangada com eles, claro está.

Tinha coleira. Vermelho berrante. Estava confirmado, era mesmo mascote do pessoal dali! Ui, mas parecia tão magrinho... Continuou em direcção a mim, mais miiiiiis, até se chegar bem pertinho...

Quando se chegou o suficiente para o ver bem... Fiquei absolutamente chocada.


O nosso pirralho estava subnutrido (bolas para os gajos da central, pensei, em linguagem mental bem mais “à norte”), mas o pior nem era isso. Constatei, com horror, que as manchinhas giras que eu tinha visto no focinho dele eram, na verdade... sangue! Tinha o focinho pintalgado com pedaços de sangue em crosta! De onde vem o sangue, de onde vem? Peguei no puto ao colo e olhei com atenção, para ficar ainda mais triste e zangada...

O sangue provinha de um olho destruído, que parecia ter sido esmagado com algo, talvez um carro. Fiquei lívida, então deixam o gato sozinho e ninguém dá conta que está ferido? Ainda por cima não é recente, porque com a respiração vinha um ruído húmido, tinha de certeza infecção nos pulmões! Ai que nervos!!!

O gatinho começou a fazer ronrom no meu colo, e eu não tive coragem de o pôr de novo no chão. Entrei pelo gabinete da companhia dos autocarros adentro, com ele embrulhado num casaco meu, e perguntei se era de alguém dali, pronta para dar um golpe de karaté ao primeiro que se mostrasse insensível ao sofrimento alheio. A senhora atrás do balcão disse que não, mas teve a gentileza de perguntar a um motorista se saberia se o bichinho tinha dono, mas a resposta foi a mesma: total ignorância.
Aqui chega a parte em que me redimo dos funcionários dos quais falei mal: como percebi que o gato afinal (já) não tinha dono mas estava ferido, não podia, em consciência tranquila, deixá-lo onde o tinha encontrado... Pedi por favor (a fazer olhos de Bambi à senhora do balcão) para me deixarem levar o miau comigo até Faro, porque eu ia levá-lo ao hospital veterinário... (mais olhos de Bambi). A senhora olhou para mim, compadecida, depois para o motorista, em busca de aprovação, e lá veio um “pode ser, menina, a gente deixa.” Fiquei tão contente!


O meu pendurinha lá veio comigo, na viagem, sempre irrequieto, embrulhado no meu casaco. Eu estava preocupada com tudo e mais alguma coisa: que o gato incomodasse alguém e essa pessoa se queixasse ao motorista; que o gato me fugisse do colo; que o cheiro (bem intenso) do puto chegasse à narinas sensíveis de alguém e houvesse confusão; pior que tudo, que algum golpe do destino fizesse com que a polícia mandasse parar o autocarro! É que, para quem não sabe, é contra a lei transportar animais na parte dos passageiros em transportes rodoviários públicos, e dá multa... Eu pagava-a, claro, porque a responsabilidade era minha, caso isso sucedesse, mas não queria arranjar chatices a ninguém... Eu bem digo que tenho jeito para inventar novelas!

A minha mãe veio-me buscar quando chegámos. Eu estava muito preocupada, porque a respiração do gatinho tinha um ruído bastante húmido, o que não era nada bom sinal. E se a isso acrescentássemos um olho rebentado, a coisa piorava ainda mais...
A minha mãe (honra lhe seja feita) já sabe que a filha se arma algumas vezes em madre teresa dos animais, e é uma mulher extraordinária, porque lá vai atrás das minhas “maluqueiras” e me ajuda. Com um suspiro de resignação, ligou o carro e lá fomos nós...

Chegadas ao hospital e explicadas as circunstâncias que haviam envolvido a vinda do felideo, foi-nos logo dito na recepção que, lá porque o animal era abandonado, que aquilo não era nenhuma instituição de caridade e era preciso pagar conta na mesma. E nada de pensar em deixar o bicho ali na esperança que alguém o levasse, porque eles punham-no na rua! Muito obrigada pelo aviso, carinho e consideração da instituição em causa, devem mesmo adorar animais (NOT!)...
Fiquei logo com os azeites, mas abstive-me de comentários porque a única coisa que eu mais queria era ver aquele pequenino de plena saúde, não se preocupe minha senhora, a conta será paga, e também não vou abandonar o bichinho aqui, já basta que outros já o tenham feito...

Enfim, o veterinário lá o viu... Perdão, viu-A. Era uma menina. Pois claro, com aquele mau feitio todo de fugitiva de Alcatraz (continuava a insistir em sair de dentro do meu casaco) só podia ser fêmea!

Diagnóstico: tinha uma coleira anti-pulgas criminosa para o seu narizinho demasiado jovem, estava subnutrida, tinha tantos ácaros nos ouvidos que saltavam de lá de dentro em placas quando ela se coçava, globo ocular rebentado para além de qualquer recuperação, infecção nos pulmões provavelmente por causa do olho, parasitas internos quase de certeza... e nada de certezas de sobreviver à operação. Sim, teria de ser operada para remover o que restava do olhinho, porque já mais nada se podia fazer. Como estava muito magra e era demasiado novinha, também não me garantiram que sobrevivesse. Claro que novamente me “lembraram” que a conta teria que ser paga...


Avante! Para a faca. Esperemos o melhor. Assim como a menina está é que não fica, não é?...

Quando a operação terminou, fui ver a nossa sobrevivente. A minha menina estava bem de saúde, era uma lutadora! Ainda não sabia bem o que fazer depois de a gatinha sair do hospital, não podia ficar com ela... Já tinha um gato e não dava para ter mais um naquela altura da minha vida. Mas alguma coisa se arranjaria!

Afinal a criança tinha sido vítima de coriza, que lhe tinha feito rebentar o olhinho... o outro também estava já infectado e tinha que ser tratado com gotas, senão também iria cegar. Não a podia juntar com o meu gato porque aquilo pegava-se, de modo que foi sempre uma guerra, arranjar maneira de eles não terem contacto um com o outro...

Ela comia de tudo. Era uma esfomeada e depressa engordou. O problema é que não parava de ter diarreia, e eu resolvi comprar-lhe leite próprio para gatinhos, que ela adorava, mas não resolvi nada... Um dia vi uma lombriga viva a sair-lhe do ânus e percebi o que se passava. Tratei da desparasitação e a coisa resolveu-se (não o podia ter feito antes de ela ganhar peso, porque lhe ia fazer mal...)

A minha mãe foi uma santa, aturou uma data de coisas que eu tive que fazer para manter os gatos separados: durante o dia, a gata era posta na casa-de-banho com janela exterior, de noite ia para a marquise fechada do meu quarto (de dia era demasiado quente para a gatinha aguentar lá estar, daí as constantes trocas...), depois era areia, dejectos e comida espalhados pelas duas divisões... Mãe cheia de paciência!

O meu gato, já em Braga, acabou por deprimir (a foto “Sou meiguinho!” é dessa altura), porque a notícia de que eu tinha uma criança nova em casa correu entre os meus amigos e eles quiseram conhecer a Mia (assim baptizada pelos seus miares musicais constantes), negligenciando aquele que era sempre o rei das atenções. E como eles dois não se podiam juntar, os meus amigos iam para o quarto da gata e o Squish ficava a olhar da varanda... Fez uma infecção na garganta por causa disto tudo junto, e eu jurei nunca mais recolher gatos de rua! Sobre isto eu depois escreverei, a respeito de outra gata que encontrei há pouco (sem comentários)...

E para resumir que já me alarguei demais, digo que foi complicado arranjar casa para a Mia. Eu não conhecia este maravilhoso site e tudo o que consegui fazer foi perguntar a pessoas conhecidas se a queriam, na esperança que alguém passasse a palavra e eu tivesse sorte... Tinha que dar a gata muito rapidamente, porque o Squish não a queria ali, sem poder brincar com ela! Não me perdoava se ele deprimisse de novo. Estava a ver a coisa mal parada, ninguém a queria...

Sorte das sortes, umas amigas minhas tinham, por sua vez, uma amiga que ia viver dentro em breve para Braga, e elas queriam oferecer-lhe a gatinha... A principal dificuldade foi sempre o facto de ela não ter um olhinho, ao que parece, ninguém quer um bichinho que não seja “perfeito” (pois pois, mostrem-me um ser humano perfeito, não querem lá ver? Hmmpff).

E pronto, a Mia (depois rebaptizada de Lia por já haver demasiadas Mias, humanas e animais, nossas conhecidas) foi apresentada à nova mamã, que se derreteu toda com ela! O mais engraçado nesta história é que a nova mamã da gatinha é terapeuta da fala e lida diariamente com crianças com problemas comportamentais, pelo que nem quis saber se a Lia tinha dois olhos ou um! :D É gente desta que me faz sentir bem!

E pronto, é esta a história da Mia/Lia, espero que tenham gostado!