Apareci num final de Junho (2001) numa Avenida muito movimentada de Lisboa. Fiquei por ali duas semanas, porque algumas pessoas começaram a dar-me coisas boas para comer. Até me arranjaram um caixote de papelão para eu dormir. Mas eu estava doente e de dia para dia nota-se que piorava, cada vez com mais dificuldade em respirar, com o meu narizito sempre tão tapado que tinha que abrir a boca para respirar. Como sou pequenina a minha actual dona pensou que eu tinha meses (são tão tolos, alguns humanos). E andava a procurar encontrar um novo lar para mim, uma gatinha querida e doente, ainda muito novinha. Piorei muito e ela decidiu internar-me, enquanto procurava um dono, mas o tempo passou e dono nem vê-lo. Agosto, todo o pessoal de férias, uma gata já crescida, não dava. Até porque no veterinário se descobriu que eu não tinha bem uns mesitos, mas muitos aninhos no pelo. Felizmente que por aqui fiquei, já que todas as mordomias me são prestadas. Ao princípio havia aqui um cavalheiro também de 4 patas, que embirrou comigo e me queria fazer a vida negra. Hoje sou eu quem lhe diz se ele pode ou não passar à minha frente, sem levar uma merecida corrida. É que eu não esqueço e agora já sinto que esta casa é mesmo minha e não estou pelos ajustes. Para mim, cá se fazem, cá se pagam. Sou a anciã e exijo a esta juventude toda (6) que me trate com o respeito merecido. Acho que posso dizer que sou feliz nesta casa. Tenho paz, tenho uma ementa sempre bem variada (e quando me querem dar a mesma comida dias seguidos eu, muito fleumaticamente, sento-me junto à minha tacinha cheia e aguardo que a comida seja retirada até que novo repasto, mais do meu agrado, me seja servido). Tornei-me exigente com o que como. Porque sou uma grande apreciadora de boa comida, e acho que nesta fase da reforma, mereço só do bom, do melhor e sobretudo, do sabor que me está a apetecer naquele momento. Brinco de vez em quando, mas sozinha. Durmo, como, e apanho banhos de sol à janela, enquanto observo o mundo lá fora. Também me divirto a assistir às animadas brincadeiras aqui da pequenada, embora por vezes me passe dos carretos com tanta animação, sobretudo quando o barulho me perturba o soninho. Não tenho saudades dos tempos em que andava sem rumo, nas ruas, à fome, ao frio. A janela pode estar aberta que não tenho o menor interesse em sair lá para fora (não quero correr o risco de não conseguir voltar a entrar para o meu hotel de luxo). Sou velhota, continuo a ter alguns problemas respiratórios, que melhoraram muito desde que fui vacinada e com sessões de vapores (que eu aliás, não aprecio particularmente). Até 2001 tenho um passado incógnito, mas a estrelinha da sorte sorriu-me e consegui conquistar o direito a um fim digno e tranquilo. Até lá, cada dia é único e maravilhoso.
Fofinha, Cascais, Agosto de 2003 |