Tudo começou com um pardal. O Spooky teria entre 18 meses e 2 anos, e parecia ter descoberto o maravilhoso mundo das aves. Ficava siderado a olhá-las no ar, e quando em terra, tentava chegar-lhes ao pé para as cheirar e satisfazer a sua curiosidade. Certo dia, ao passear com ele, avistou, primeiro que eu, um pardalito bébé caído no chão. Não tive tempo de fazer nada. Ele pulou imediatamente, abocanhou o passarinho e apesar dos meus pedidos aflitos, convencido de que eu lhe ia tirar o que ele tanto queria, serrou a dentadura. Eu, desesperada tentava abrir-lhe as mandíbulas. Imaginem a cena, se conseguirem. Um cão sentado, numa pose inocente, dentes serrados, olhar impassível e ar de “não estou a perceber o que queres, não tenho aqui nada, nadinha…” Claro que, quando finalmente cedeu, retirei-lhe da boca um passarinho envolto em baba. O coitadinho tinha sufocado, e o Spooky olhava para mim como se fosse eu a responsável pelo crime, eu, sim, porque ele apenas tinha querido protegê-lo dentro da gaiola que a sua bela dentadura formava.
Da outra vez tinha sido um pombo ferido de raspão numa asa pelo chumbo de um pretendente a caçador. Esse foi salvo pelo cão. O Spooky chegou antes do caçador, e tal como tinha feito com o pardal, abocanhou-o gentilmente. A sorte é que este era maior e conseguia manter o pescoço fora da boca do cão para respirar. Eu, ainda traumatizada pela experiência anterior, insistia com ele:”Dá, dá à dona, dá…” E o Spooky com a sua surdez selectiva, a fazer ouvidos moucos, e a segurar, quase só com os beiços e um ou outro dente canino, o corpo do pombo.
Entretanto, chega-se a nós um fulano de pressão de ar ao ombro e pede-me para lhe dar o pombo. Comecei por dizer “não dou”, depois que "o pombo não é seu” e mediante a insistência dele, finalizei com ”o cão é que tem o pombo, entenda-se com ele”. E se eu não estava nada interessada em dar o pombo ao homem, o Spooky muito menos, mas, só quando tirou as medidas ao cão, é que o homem deve ter percebido que não ia ser fácil convencê-lo.
Começou por tentar um diálogo simpático: “Dá cá cãozinho lindo” – felizmente que o Spooky não é de subornos – “Deixa ver o passarinho, dá, dá…” E eu concentradíssima, na minha transmissão de pensamento, enquanto fazia um olhar desinteressado: “Não dá Spooky, não dá!” Entre as insistências dele para o “dá”, e as minhas insistências mentais para o “não dá”, acompanhadas das rosnadelas ameaçadoras do Spooky cada vez que o homem estendia a mão para o pombo, quem ganhou foi o cão.
Sempre pensei que no meio daquela novela, o pobrezinho do pombo morreria de ataque cardiaco nos dentes do cão, mas a avezinha, depois do chumbo na asa já devia estar por tudo e aguentou-se. Quando finalmente o Spooky acedeu a dar-me o pombo - não sem antes o besuntar com uma das suas lambidelas - passámos à recuperação da asa, que afinal só tinha sido tocada de leve pelo chumbo. O sortudo, viveu numa gaiola grande que uma vizinha que gosta de aves tem no quintal, até se recuperar da asa. Depois seguiu a sua vidinha, voltando várias vezes para comer, até que um dia não voltou mais. Gosto de pensar que terá constituido família noutro local e morrido de velhice no seu cantinho.
No dia em que o Spooky encontrou a gaivota, apetecia-me andar a pé. Perto de casa dos meus pais há uma praia ribeirinha, conhecida pelo simpático nome de: Praia dos Tesos. São 4 km até lá e 4 km para voltar. Como é um local isolado, e nem sempre bem frequentado, levei o cão.
O Spooky tem 45kg mais coisa menos coisa, e mesmo quando não se zanga, pelo tamanho que tem, mete respeito. As pessoas afastam-se quando o vêem e por duas vezes me safou as costas tê-lo comigo. Lá fui eu, de garrafa de água numa mão e trela na outra. A trela naquela altura era só para o prender quando voltássemos a casa, já que o regresso era sempre um filme de 5º categoria em que ele fazia mil e uma fintas para não voltar – além da técnica do :”Estou tão pesaaaaaaadooooooooo…. Não me leves, não me leves!...” enquanto eu puxava a trela. E puxar um cão de 45kg, devo dizer-vos que é obra!
Chegados à prainha, o Spooky correu, correu, correu. Todos os bandos de gaivotas pousados na beira da água tiveram direito a uma perseguição do cão, que ficava depois de nariz no ar a vê-las voar cheio de inveja, ou então atirava-se às águas do rio a tentar persegui-las para lá da leve rebentação. Nem vou falar da vez em que pensei que iria buscá-lo ao Barreiro a nado, porque o menino cismou com uma gaivota que voava para aqueles lados. Nessa tarde, depois dos 4km “para lá”, já eu pensava que não me apetecia assim tanto andar os 4km “para cá”. Deixei-o focinhar à vontade, descansei 20 minutos e assobiei para voltarmos.
Estava tudo a correr lindamente naquela tarde. O Spooky veio quando o chamei e começou a percorrer o caminho de volta, em terra batida. Às tantas pula novamente para a praia e desaparece atrás de um arbusto. Continuei a andar, uma vez que era comum ele voltar atrás e depois largar a correr atrás de mim quando via que me afastava demais. Mas, desta vez, nada. Chamei, assobiei, ameacei. Furibunda, voltei atrás, e lá fui dar com ele, de focinho enfiado no arbusto. “Spooky, o que é?” E aquele focinho negro, olha para mim e depois para o arbusto, como quem diz:”Anda cá ver”.
O Spooky tem um péssimo hábito, penso até que comum a outros cães. Qualquer animal morto é um excelente tapete onde ele se esfrega até mais não poder. Tem qualquer coisa a ver com marcação de território. Desta vez, eu estava convencida que se tratava do mesmo e qual não foi o meu espanto quando dei de bico com uma vivinha da costa, e muito quieta gaivota.
Desconhecedora da vida das gaivotas, pensei que estaria a chocar ovos – a coisa mais parecida com uma gaivota que havia lá em casa eram as galinhas da avó, e se as galinhas chocavam ovos, as gaivotas certamente que o faziam, e aquela ali tão quietinha só podia estar a chocar ovos.
Dada a última obcessão do Spooky por pássaros, vi logo que ia ser trabalhoso convencê-lo a deixar a gaivota sossegada. Prendi-lhe a trela à coleira e disse-lhe:”Vamos. Para casa.” em voz firme. Nem um movimento. “Spooky anda. Casa.”. Era como dar ordens a uma parede. Desisti e puxei-o. Era eu a puxar pela trela e ele a puxar por mim, sentado, teimoso, de focinho enfiado no arbusto, quase junto ao bico da gaivota que permanecia impassível. Creio que estivemos cerca de 20 minutos, eu e o cão a medir quem era mais teimoso.
Nesse dia não precisei de trela para o levar até casa, bastou-me pegar na gaivota ao colo. Por baixo dela, nada de ovos. Era grande, pesada, e não tentou nunca bicar-me. Aceitou simplesmente que a agarrasse e levasse comigo. Pareceu-me velhota.
A minha mãe que já estava habituada a que eu levasse animais para casa, quando me viu com a gaivota debaixo do braço, ficou estarrecida. Acho que dessa vez consegui surpreendê-la!
Nessa noite dormimos com uma gaivota fechada na sala – único sitio a salvo dos gatos. O meu pai fez-lhe uma cama dum caixote, com uma camisola velha da avó. No outro dia de manhã quando acordei fui logo procurá-la. Com o cenário vazio pensei o pior e imaginei os gatos engalfinhados com a gaivota. Afinal ela tinha morrido tranquilamente durante a noite e o meu pai já a tinha enterrado no quintal. Era provável que estivesse doente, ou a morrer de velhice. Fiquei a pensar se teria feito bem em trazê-la. A verdade é que o cão não teria arredado pata da praia, e com tanta ratazana no meio das rochas era provável que a coitada tivesse uma morte violenta.
Fiquei depois a saber que a gaivota é uma espécie protegida e que poderia ter sido multada por lhe ter pegado, mas duvido que o Spooky se tivesse mostrado sensível a esses argumentos. E assim foi o dia em que trouxe um bocadinho de Mar para casa.
Carla Martins 16/07/04
Ao meu Avô que amava a música, a poesia e o Mar.
Sei que o Amor não se faz de monumentos,
Mas que melhor mausoléu que o mar profundo?
E se a memória de mim vos entristece,
Pensai meus queridos, nada acaba, nada fenece,
Nesse oceano, que une o Novo e o Velho Mundo. CMar-19/07/04
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