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Artigos  » Crónicas

O Mano Nhau

Vivia na R. do Salitre, numa casa do séc. XVII com 3 andares que pertencia aos meus pais. O 1º é independente e era aí que eu tinha o meu atelier, o 2º e o 3º eram pegados e era onde viva com a minha mãe desde que ela tinha enviuvado. O 1º andar dava acesso a um pátio grande onde costumavam ir os gatos que viviam no Parque Mayer que é nas traseiras da casa.

Um dia, reparámos que andava no pátio uma gata, preta e branca, que parecia grávida. A minha Mãe que adorava gatos começou logo a mandar-lhe, lá de cima, restos de comida, e a gatinha habituou-se a ir ali comer. Entretanto os gatinhos nasceram, eram 3, lindos e fofinhos, 2 eram pretos e brancos como a mãe e o outro era castanho tigrado com pelos dourados na barriga. Todos os dias eu ía ao pátio pôr comida para a gata ou deitava-a da cozinha no 3º andar e não tardou que víssemos os gatinhos nas corridas e brincadeiras sempre vigiados pela gata mãe.

Mais ou menos 3 semanas depois, um dos gatinhos desapareceu e uma semana mais tarde a gata e o outro preto e branco desapareceram também, ficando o castanho tigrado, ainda tão pequenino que não conseguia saltar o muro que separava o pátio do Parque Mayer. No primeiro dia nem demos por isso mas, à noite, o gatinho miava que fazia dó. De manhã fui ao pátio e verifiquei que estava sozinho e nem sombras da mãe e do irmão. Fui comprar uma pescadinha congelada, cozi-a, tirei-lhe as espinhas e fui pô-la ao gatinho mas este fugiu aterrorizado e não comeu a pescada nem bebeu o leite que lhe tinha posto também. Telefonei à minha cunhada Isabel (que tinha adoptado muito recentemente um gatinho abandonado na rua) e perguntei-lhe o que devia fazer. Disse-me para comprar uma latinha de Whiskas gatinho porque eles normalmente não resistiam. Assim fiz, mas tentei agarrar o bichinho que fugiu, de novo, em pânico e meteu-se num buraco. Deixei a lata aberta e uma tigela com água e verifiquei que, passado um bocado ele veio comer mas, se me via, fugia logo e ía-se esconder. Deixei-o em paz a comer e repeti, por vários dias, a mesma coisa. Punha a comida e ía-me embora. Aos poucos comecei a pôr a latinha cada vez mais perto do patamar que tinha a porta de acesso ao pátio, até a pôr mesmo no patamar. Ficava com a porta aberta mas com as grades fechadas a ver o gatinho comer. Assim que abria as grades ele fugia mas se as fechava, vinha outra vez.

Passaram-se quase 2 semanas e o gatinho foi-se habituando à minha presença. Nunca mais tentei agarrá-lo mas enquanto ele estava a comer falava sempre com ele. Dizia-lhe que era lindo , fofinho, muito querido, etc. etc., até que um dia , quando tinha ido lavar as mãos à casa de banho (que tinha a tal porta para o pátio) ele veio roçar-se nas minhas pernas a fazer imenso ronrom.

A partir daí, adoptou-me. Peguei-lhe ao colo e verifiquei que estava impestado de pulgas e, sem dúvida, teria também parasitas internos. Levei-o a um veterinário que o desparasitou e vacinou, disse-me para lhe dar banho com um shampoo próprio para gatinhos pequeninos - coisa de que ele não gostou nada. Quando acabei de lhe dar banho fugiu para o pátio e não apareceu mais nesse dia. No dia seguinte lá estava ele a miar para pedir miminhos e comida. Comecei a habituá-lo a ir para o meu atelier e para o 2º andar (às escondidas da empregada da minha mãe que não queria bichos em casa) para que a minha mãe se entretesse com o bichano uma vez que estava muitas horas sozinha enquanto eu estava a trabalhar lá em baixo. Chamei-lhe Bastet, a divindade egípcia dos gatos selvagens, também deusa do amor e das artes mas, foi a minha filha Domingas que o baptizou com o nome que lhe ficou para sempre: O Mano Nhau.

Não, a minha filha não era bébé. Tinha 22 anos, uma imaginação delirante para nomes (como a mãe dela) e adorava todos os bichos, sobretudo gatos e cães. Tinha uma relação com os animais estranhíssima porque todos eles a adoravam também e confiavam nela imediatamente. Desde muito pequenina que assim era. E o Mano Nhau não foi excepção. Tinha uma verdadeira paixão pela Domingas. Ela chateava-o até ele fugir mas, daí a 5 segundos já estava outra vez ao colo dela para mais uma sessão de "torturas". Apertava-o, dava-lhe beijinhos, punha-o de barriga para cima e enfiava a cara na barriga dele, fazia-lhe cócegas...eu sei lá. Ele mordiscava-a (sempre com cuidado e nunca punha as unhas à mostra) . Era de uma meiguice incrível.

Quando eu estava a trabalhar - fazia vestidos de época e de alta costura, que desenhava e confeccionava eu própria - o Mano Nhau passeava-se em cima dos papéis, ou nos moldes que estava a desenhar ou nos tecidos que estava a cortar. Pulava para cima do estirador e deitava-se mesmo pertinho de mim. Tinha que lhe pegar para o tirar dali e poder trabalhar. Então ía para o sofá e esparramava-se com um ar amuado mas bastava que eu lhe falasse para vir roçar-se a fazer ronrom.

Tinha um hábito terrivel. Eu tinha uma almofada fofinha que tinha feito e pintado. Quando descansava no sofá as minhas costas doridas punha-a nos rins para ficar mais cómoda. Pois era nessa almofada que o Mano Nhau marcava território com os odorosos xixis que me empestavam o atelier. Lavei-a vezes sem conta até que desisti e deitei-a fora.

Durante 2 anos e meio o Mano Nhau foi o meu companheiro diário. Não dormia em casa, dormia sempre na rua. Não era um gato de casa embora lá passasse muitas horas, era um gato de rua que me vinha visitar e a quem eu fazia companhia (quando ele queria) e dava de comer. Era, no entanto, de uma meiguice desmedida e adorava-me tanto como eu a ele.

Um dia, um dos meus filhos que viva em casa do pai, adoeceu gravemente e como o pai trabalhava o dia todo, precisei de ir para lá para tratar dele. Como o meu ex-marido me disse logo que não queria gatos em casa, pedi à minha filha para ir à R. do Salitre todos os dias para dar de comer ao Mano Nhau e fazer-lhe um pouco de companhia. Pensava eu que estaria fora apenas pouco tempo e não 10 meses como se verificou. Quando eu podia sair de S. Amaro de Oeiras, ía lá a casa ver o gato. Das primeiras vezes ainda me recebeu com muitas turrinhas e ronrons mas, também, com muitos miados de queixa. Depois a Domingas disse-me que ele, cada vez aparecia menos e que, quando vinha, miava desesperado e andava por todo o lado à minha procura. Como não me encontrava, fugia.

Fui à R. do Salitre disposta a trazer o Mano Nhau quer o meu ex. quisesse ou não mas, quando o chamei, ele virou-me as costas, pôs o rabo para cima em sinal de desprezo e fugiu. Nunca mais o vi e tive um verdadeiro desgosto. Senti que o tinha abandonado e traído a sua amizade e confiança. Mas não podia fazer outra coisa, na altura.

Tenho várias fotos do Mano Nhau mas estão todas em Portugal pelo que não as posso inserir. Mas era um gatinho lindo que nunca esquecerei e terei sempre remorsos por o ter abandonado.

- ZicaCabral (Zica CAldeira Cabral) [ Europe/Lisbon ] 2004/06/30 10:21

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» nestum ( Margarida Alves) » [ Europe/Lisbon ] 2004/06/30 21:15
Já se sabe que os animais, não pensam de uma forma tão elaborada como nós humanos, são mais "primários". De nada valeria explicar a situação, mas se tivesse a capacidade humana, concerteza compreenderia.
Mas não há palavras que atenuem o sentimento de culpa, apesar de não existir razão de ele. Digo porque compreendo! Tive que tomar uma decisão em relação a uma gata que tive durante 13 anos, eutanásia. Ela já estava a morrer e a sofrer, não se podia fazer nada por ela. Como a levei, tomei a decisão, mas não fiquei até ela "adormecer", acho que a abandonei no seu ultimo momento.
O que interessa é que temos uma recordação deles, por mais triste que fique pela saudade. Tristeza maior era nunca ter partilhado esses momentos, nunca os ter conhecido, a partir do momento que entram na nossa vida enriquecem-nos e isso ninguém nos pode tirar.

» Inner_Silence ( Leonor Calaça) » [ Europe/Lisbon ] 2004/06/30 15:03
De certeza que o Mano Nhau arranjou uma casinha onde foi amado. É sempre uma pena quando os nossos peludinhos ficam tristes connosco... Mas há coisas na vida que não podemos evitar, não é? sad.gif

» Rowan ( Ísis Calió) » [ Europe/Lisbon ] 2004/06/30 11:49
sad.gif Não foi tua culpa Zica, foram as coisas q o destino nos prega!! Ele ficou chateado... mas n tinhas como explicar para ele o q acontecia... Ele sempre lembrará de ti, e tu dele!! Fique com as boas lembranças!!

» Gasparbia ( Fernanda Ferreira) » [ Europe/Lisbon ] 2004/06/30 11:41
Vieram-me as lágrimas aos olhos ao ler esta história tão linda!! E de certeza que terminou bem, o Mano Nhau foi acolhido numa família bem simpática e ainda hoje se lembra dos bons momentos que passou ao lado da Zica e do seu estirador!! smile.gif

» hecep ( Helena Cepeda) » [ Europe/Lisbon ] 2004/06/30 11:09
Pois é, os gatos são um bocado assim, são mesmo capazes de amuar e escolher novos donos ou preferir a independencia. A única coisa era que se tivesse castrado talvez estivesse mais caseiro e tivesse ficado por lá, mas nunca saberemos. Aos meus pais em Angola aconteceu algo semelhante com uma gata. Eu confesso que obcecada como sou pelos gatos acho que não conseguiria manter uma relação tão à distância (dormir na rua, etc) a não ser que fosse mesmo um gato para o bravito. Enfim, esperemos que o nhau tenha sido adoptado por alguém da vizinhança ...
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