[ Europe/Lisbon ] 2004/03/23 13:16 "Ao Ser mais especial da minha vida"
O Tótó era o meu bébé.
Não foi o meu primeiro gato, longe disso! Antes dele, já o Euzébio e o Patinhas tinham partilhado o chão da casa (grandes gatinhanços que eu fazia), o berço, o cobertor, e até as tigelas da comida comigo, a bébé da casa. Sem falar dos gatos da quinta, independentes e fascinantes!
Mas o Tótó foi aquele ser especial, a personificação de Anauel meu anjo protector, que com a sua imensa ternura e amor me ensinou a ser quem sou.
Tinha 6 anos quando o meu pai chegou a casa com uma coisa pequenina ao colo, só se viam olhos azuis, enormes, num focinho escuro. Um gato!!! UM GATO!!! Finalmente via o meu pedido satisfeito!!! Tanto o Euzebio como o Patinhas já tinham partido para o Raimbow e eu sentia que a casa não era a mesma sem 1 gato...passaros, peixes, a cadelinha Fifi...não chegavam para mim, eu precisava de 1 gato!
E assim chegou ele, siamês falador, pulguento, e muito meigo! Encarou comigo e de imediato saltou para os meus braços, abraçou-me e sussurrou ao meu ouvido "finalmente estou em casa, consegui encontrar-te!!" Olhei para ele de olhos esbugalhados e ele semicerrou os dele e fez um "shhhhhhhhhhhhhh" como quem diz "é o nosso segredo"!
A partir desse dia, eu e o Tótó, assim baptizado pois eu adorava ver aqueles filmes do Tótó chapeu de coco (alguém se lembra??) tornámo-nos inseparáveis!
Ele contou-me tudo o que se lembrava, historias de outros gatos, outros tempos, mas que se mantinham vivas nos seus genes...aventuras fabulosas e outras tenebrosas...ele falava-me ronronando e eu fechava os olhos e deixava-me levar num sonho para sitios longínquos...
Crescemos juntos, chorámos juntos,estudámos juntos e partilhámos as nossas alegrias e tristezas. Se eu chorava ele limpava-me as lágrimas com umas pataditas suaves, e sussurrava naquele tom tão quente "as tuas lágrimas amaciam-te o coração, deixa-as rolar e nunca tenhas vergonha de chorar pois só chora quem sente" e eu acabava por sorrir e agarrar nele e dançar, pois ele também adorava dançar e rodopiar ao meu colo.
Quantas directas a estudar para os testes do liceu e os exames da universidade...e ele sempre ao meu lado, ouvindo com muita atenção a lengalenga que eu recitava alto vezes sem conta...nunca se queixou dessas secas descomunais, e acompanhava-me nos intervalos em que atacava o frigorifico :lol: e o armário das bolachas, que isto de estudar dava muita fome.
Lembro-me como se fosse hoje a quantidade de presentes que ele me trazia. Só para mim. Mostrando-me que embora fosse um anjo disfarçado, tinha muito de gato também! Qualquer insecto ou rastejante que entrasse lá em casa acabava depositado aos meus pés, ou na minha cama - o pior foi a lesma, que nojo!!! Tive que lhe dar banho pois ficou com aquela baba na boca e no pelo...brrrrrrr mas claro que sempre lhe agradeci e elogiei os seus dotes de gato caçador ;)
Lembro-me de uma vez que fui de férias sem ele. Ele ainda tentou esconder-se na minha mala, mas não teve sorte heheheh a minha mãe desistiu de me fazer a cama pois era o poiso dele...desmanchava a cama e miava chamando por mim. Quando regressei amuou e não me ligou nenhuma, recusou-se a dirigir-me a palavra e obrigou-me a pedinchar a sua atenção...
Foi ele que ouviu os meus desgostos de amor, as minhas fúrias, e todas aquelas emoções conturbadas de adolescente! Foi ele que me ensinou em muitas ocasiões como agir, pois embora enorme e pesado, era a graça felina em movimento e conseguia sempre sair-se bem. E sempre que eu tinha dúvidas, elas desvaneciam-se da minha mente após uma boa conversa com o meu gatarrão. E quando tudo parecia estar perdido e todos perdiam a cabeça por isto ou aquilo, lá estava ele. Sentado tipo esfinge. Olhar sereno e calmo como 2 lagos azuis cristalinos. E onde o seu olhar poisava, tudo acalmava.
Os anos passaram. Aos 14 anos (tinha eu 20) teve uma crise hepática. Corri com ele para o Vet. Chorei, chorei, chorei. Nem conseguia falar. Mas ele sussurrava-me "ainda não chegou a minha hora, tem calma, tu ainda precisas de mim e eu não te vou abandonar, pois os amigos verdadeiros nunca abandonam quem amam"
O Tótó recuperou. Os anos passaram. Cheguei a expulsar um amigo de minha casa pois teve o desplante de empurrar o Tótó para fora do seu sitio no sofá. Ninguém além de mim ou os meus pais tocavam naquele gato tão especial. Eu tinha medo que ele se esfumasse como um sonho. Aquele gatarrão, falador. Falava com as vizinhas, na varanda. Cumprimentava sempre e perguntava como tinha sido o dia delas, os miudos como estavam...e elas lá tagarelavam com ele, sem nunca responder ás suas questões, mas ele divertia-se e elas também.
Um dia cheguei a casa e ele tinha partido. Aos 18 anos o meu anjo foi chamado para o Raimbow pois já havia cumprido a sua missão terrena e podia agora continuá-la lá do alto.
Foi o dia mais triste da minha vida. Peguei no seu corpo inerte e frio e cerrei os dentes. Senti uma revolta enorme dentro de mim e gritei agarrada a ele, insultei-o por me ter deixado assim e logo pedi-lhe desculpa pelo meu egoismo. Embrulhei-o no pano de seda selvagem que me tinha custado os olhos da cara, mas cujo azul se fundia com o azul dos seus olhos. No seu pescoço coloquei o fio com o medalhão em forma de lua crescente, cravejada com as pedras do meu signo...o meu talismã que há anos não saia do meu pescoço. Telefonei a um amigo e fui enterrá-lo em Monsanto. Pedi á Deusa que o guardasse na sua viagem e o recebesse de novo no seu seio, pois nunca existiria ser tão perfeito, amigo tão leal e conselheiro tão correcto como ele
De vez em quando ainda me visita nos meus sonhos. Quando mais preciso, é a sua voz que oiço antes de dormir e é o toque leve da sua pata na minha cara que sinto. Quando aflita, é a ele que peço protecção. A sua imagem, o azul dos seus olhos, o tom quente da sua voz, inundam-me sempre de uma paz preciosa em tempos conturbados.
E lembro-me da primeira vez que ele saltou para o meu colo e que me falou, e eu, com os meus 6 anos de ingenuidade e coração aberto ouvi-o e entendi-o. Ouvi-o com o coração. Pois é com o coração que podemos ouvir e entender muita coisa.
Escrevo com as lágrimas a rolarem-me pela cara, sem patadas que as limpem, mas sem vergonha de chorar pois só chora quem sente.
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